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Lispectorante (2025), de Renata Pinheiro

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Já chego com uma confissão: não conheço a obra de Clarice Lispector tão profundamente quanto gostaria. Na escola, li dela apenas um conto ou crônica sobre uma mulher num ônibus. Já adulta, li “Água Viva”, que , e “Perto do Coração Selvagem”, do qual pouco me recordo. Conheço-a mais pelas adaptações que fizeram de sua obra — que muitos poderiam classificar como “inadaptável” — para os cinemas, por exemplo, com “O Livro dos Prazeres” (2020). Também para as telas foi transportado o romance “A Hora da Estrela” — e o filme de 1985 acaba de ser -, que catapultou Marcélia Cartaxo se não exatamente para o estrelato, ao menos para algum reconhecimento entre os cinéfilos. Redescoberta pelo público em geral com “Pacarrete” (2019), Marcélia se reencontra com Clarice em “Lispectorante”.

Uma sacola plástica ao sabor do vento vai da estátua de Clarice Lispector numa praça em Recife até a casa em que a artista Glória (Marcélia Cartaxo) está visitando a tia Eva (Ivonete Melo). Artista ou ex-artista? Glória conta que deixou de produzir arte faz tempo, e também se separou do companheiro, algo que era novidade para Eva. Tia Eva está endividada e, quando seus quadros preciosos são levados para cobrar e cobrir as dívidas, a idosa vai parar no hospital. Glória fica sozinha na casa, mas não por muito tempo.

Nas suas andanças pelo bairro da Boa Vista, Glória ouve um animado guia de turismo falando sobre Clarice. Ele mostra o prédio onde a escritora cresceu e o imóvel, hoje fechado, fixa-se na mente de Glória. Próximo do imóvel ela conhece o artista de rua bem mais novo, Guitar (Pedro Wagner), com quem se envolve.

Há uma subtrama de um mundo em colapso, habitado por uma Grace Passô cacarejante, que só pode ser visto pelas frestas dos tijolos da velha casa de Clarice. Quando Glória encontra a figura de Grace no “mundo real”, entendemos que aquele mundo paralelo nada mais é do que um mundo recentemente abandonado.

“Lispectorante” é um filme muito poético, feito para homenagear uma mulher que não foi poetisa, apesar de ter transitado por gêneros e públicos-alvo na literatura. Clarice escreveu para adultos e crianças; romances, contos, crônicas e ensaios. Viveu apenas 57 anos, mas nos legou uma obra que ultrapassa os séculos.

O filme escolhe aproximar dois ícones da cultura brasileira que, contudo, não nasceram no Brasil: Clarice Lispector e Carmen Miranda. Clarice nasceu onde hoje é a Ucrânia, enquanto Carmen é portuguesa de nascimento. Ambas viveram relativamente pouco, mas são reconhecidas como ícones brasileiros no exterior: Carmen é figura que habita o imaginário mundial quando se fala sobre o Brasil, enquanto Clarice vem ganhando mais espaço com traduções para línguas estrangeiras e também destaque por ter sido lida e , muito amada pela comunidade de leitores brasileiros.

Talvez Glória se interessou por Clarice porque ambas eram judias, sendo que a religião da família de Glória é só sutilmente revelada, enquanto a de Clarice é propagada aos quatro ventos pelo guia turístico espalhafatoso. A pequena Clarice, junto da família, veio para o Brasil fugindo de uma perseguição aos judeus, no contexto da Guerra Civil Russa após a Revolução de 1917. Com seu país natal, a escritora declarou não ter nenhuma ligação: “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo”.

A diretora Renata Pinheiro, que também assina metade do roteiro e da montagem, faz depois de “Carro Rei” (2020) mais um filme algo psicodélico. Sobre a jornada da protagonista, Renata declara:

“Glória representa a invisibilidade das mulheres maduras, sempre acompanhadas de impossibilidades de todas as ordens e que, mesmo assim, resistem e se rebelam”

Afinal, o que é Lispectorante: uma banda ou um psicotrópico? Como aos personagens, cabem a nós apenas conjunturas. A verdade é que o filme poderia não ter nada a ver com Clarice Lispector e ainda assim existir como um drama sólido sobre uma mulher navegando pelas mudanças da vida.

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Letícia Magalhães
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Written by Letícia Magalhães

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