A Última Etapa (1948), de Wanda Jakubowska
Em maio de 1945, a guerra acabava na Europa com a vitória dos Aliados. Meses antes, eles já vinham tomando territórios antes ocupados pelos nazistas e libertando os prisioneiros dos mais abjetos locais que já existiram: os campos de concentração. Em 27 de janeiro de 1945, o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau era libertado pelas forças aliadas. Pouco mais de oitenta anos após esta data, jogamos luz sobre um filme feito por uma mulher, Wanda Jakubowska, apenas três anos após recobrar a liberdade: Jakubowska havia sido prisioneira em Auschwitz.
Já começamos com uma ronda da polícia nazista nas ruas de uma cidade, talvez Varsóvia. Depois dos créditos, já estamos dentro de Auschwitz, com suas fileiras intermináveis de prisioneiras (porque este é um filme “feminicêntrico”) jogando o peso do corpo de uma perna para outra, mal aguentando ficar em pé. De repente, uma mulher entra em trabalho de parto e dá à luz um menino. É mais que a flor que nasceu no asfalto do poema de Drummond: é a esperança extrema do triunfo da vida contra a morte.
Não demora, entretanto, para que a jovem vida seja também ceifada. Isso acontece pouco depois da chegada de mais um grupo de prisioneiros. Mas onde há violência há resistência.
“A Última Etapa” não deixa de mostrar nada no cotidiano dos campos: o trabalho extenuante, os castigos físicos, o dia a dia no hospital improvisado e lotado, a marcha para a câmara de gás, a rotina nos crematórios. Isso tudo Jakubowska sabia por experiência própria. Não sabia como eram as reuniões dos nazistas sobre a eficácia do extermínio, mas atrevo-me a dizer que a cena por ela imaginada, com direito a uma mulher oficial dando palpite, não deve ter ficado muito diferente do verdadeiro.
Em determinado momento, a mulher oficial manda que as prisioneiras entrem em caminhões, e logo em seguida pega no colo um cachorrinho. Ela é gente comum, servindo ao mal. Eu costumava me perguntar se era possível realmente ser uma boa pessoa apenas cumprindo ordens perversas, mas descobri que não é. Somos todos dotados de consciência e livre arbítrio e mesmo situações complicadas — como a necessidade de se manter em um trabalho para o sustento da família — não podem nos impedir de seguir nossa bússola moral.
Encontramos também prisioneiras que viraram guardas, e açoitam mulheres como elas para que façam fila. Aos olhos dos nazistas, as mulheres com poder e chicotes são semelhantes às outras, seres descartáveis. Mas, como sempre acontece, um pouquinho de poder já subiu à cabeça delas. Junto ao poder, vêm os privilégios, como quartos separados e bebidas à vontade — tanto é que uma dessas mulheres declara que prefere passar dez anos no campo a ter que conviver com os bolcheviques…
O roteiro foi escrito por duas mulheres: Jakubowska e Gerda Schneider. Jakubowska foi membro da Resistência Polonesa, o que a levou ao cárcere em 1942. Apesar de todo o elenco ser polonês, os atores aprenderam a falar alemão para dar mais autenticidade ao filme.
A história de vida de Jakubowska se assemelha à de outra diretora, a italiana Lorenza Mozzetti, que teve toda a família morta na Segunda Guerra Mundial. Chegou ao Reino Unido sem um centavo, mas mesmo assim prosperou atrás das câmeras, dirigindo filmes que seriam precursores do movimento Free Cinema.
O filme mostra uma curiosa resistência quase passiva através da língua. Falando em polonês, as prisioneiras podem xingar os guardas alemães na frente deles, e eles não entendem — com a conivência da intérprete, que não traduz exatamente tudo o que ouviu. Outra forma de resistência era a música. Por exemplo: cantar enquanto trabalhasse, diminuindo o fardo, ainda que isso chamasse a atenção dos guardas. E é uma música como A Marselhesa, também usada com grande efeito em “Casablanca” (1942), que torna a partida mais heroica.
Há uma enorme diferença entre os filmes sobre Holocausto feitos em Hollywood e filmes como este “A Última Etapa”. Em Hollywood, é preciso haver um herói, um único foco narrativo, por exemplo a mãe vivendo um dilema em “A Escolha de Sofia” (1982). Filmes europeus como este aqui entendem que o que se exterminou foi uma coletividade, e é nesse coletivo que eles focam. Notaram que eu não destaquei nenhuma personagem em especial? Isso porque elas formam uma massa, e a morte de uma é uma perda para todas.
Qual a relevância de um filme como “A Última Etapa” hoje? Imensa: basta nos lembrarmos de que, segundo depoimento de Mauro Cid, Bolsonaro pretendia, caso o golpe de oito de janeiro tivesse dado certo, criar campos de concentração para seus opositores. Este filme, como provavelmente acontece com todos sobre o Holocausto, tem o objetivo claro de recontar para nada igual acontecer novamente, mas estamos caminhando para o lado oposto.
Em 1944, ainda ignorantes quanto à realidade dos campos de extermínio, Hollywood apresentava em um campo de concentração em que os prisioneiros podiam se reunir com seus advogados. Em 1946, o cineasta George Stevens mostra a verdade, ficando traumatizado após a missão de filmar os campos recém-libertos. Em 1948, Jakubowska choca o mundo, e quase oitenta anos depois continua chocando, com a crueza de uma narrativa de uma testemunha ocular. Nada mal para um filme que, logo no início, declara representar “uma pequena parte da verdade”.
“A Última Etapa” pode ser vista no YouTube: